quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Memórias no Tempo



Outra vez temos que aguentar um presépio de Natal absolutamente descolado da nossa cultura, claro, sob encomenda e concepção das “cabeças do Paiaguás”. Ridículo!   Apesar de sabermos que o Natal é uma marca em nossa memória social, zombam da criatividade de nossas crianças e do nosso bom gosto. Existem experiências criativas aqui em MT, desde ações dos artistas da UFMT. As comemorações do Natal passam para mim entre a nostalgia e a ternura. Saudades da infância e adolescência. Da minha mãe, do meu pai, dos meus avós, das pessoas amadas que nos deixaram e permanecem marcadas em nossa vida. Saudades dos presépios, obras de arte da Praça Bispo Dom José, da Rua XV no Porto. Das rodas de Cururu nos sítios de Livramento, no Acuri, na beira do Rio Bento Gomes, no Morrinho, onde vivia o povo do meu pai, saudando em desafios o nascimento de Jesus. Dos folguedos e rodas de Siriri, alegres, coloridos e pulsantes como a revoada de “maritacas”. Das revoadas de siriris, insetos alados transmutados em sua dança de sedução. Das evoluções, cantos e músicas do Boi à Serra, de Santo Antonio, até Souza Lima e Praia Grande.  Dos cerrados úmidos de Várzea Grande, Livramento e Santo Antonio, cheirando a mato, muito Pequi, Ingá, perfume delicioso de frutas como o Arachicum, a Marmelada espinho, a Marmelada bola, o Siputá, a Coroa de frade, o Cascudo, as disputadas Mangavas, de onde também tirávamos látex dos seus troncos para fazer bola de futebol. Nos quintais, mangas de todos os tipos, goiaba, araçá, pitomba, tarumã e os frutos do cumbarú nos terreiros, com tacurus e panelões para a comilança festiva, varando até o início do ano. Fartura de peixe, em “cambadas”, aves, suínos criados nos quintais. Alguns não comiam aves no final do ano porque “ciscavam para trás”, poderia dar atraso de vida. Destes tempos de memória eu sei o cheiro de frutas e de gente. Mato assim a saudades dos meus filhos e netos que estão distantes. A minha mulher amada tem o cheiro de mangava, para mim, a fruta mais saborosa do cerrado. Pena que, como Siputá e a Coroa de frade, estão mesmo em extinção. No Nordeste todas estas frutas viram fonte de renda, aqui tudo é destruído, até o pequi está nesta caminhada. A pesquisa é uma demanda só do agronegócio, do mercado em escala e exportador. Insetos polinizadores são exterminados pelos venenos, e adoecendo silenciosamente o solo, as plantas e a população exposta, desde pelo menos 25 anos atrás, com a transferência do modo de produção do Centro Sul para nosso cerrado e Amazônia. Precisamos acreditar em outras possibilidades. Mas como? Reli a história do rei Ricardo III em Shakespeare, os “exemplos de maldade, cinismo, corrompimento, canalhice e descompromisso como homem público”. Tudo a ver com a maioria dos políticos do Brasil e de MT; não representam o povo, mas, a si próprios. Desacreditados. Seria um bom presente se alguma fada com sua varinha mágica os transformassem em gente decente e honesta. Podemos reagir, sim. Bom mesmo é falar  de amorosidade, de compartilhamento, do respeito  às outras (os) . O amor moderno e pós moderno vem declinando em sua verdade e força motriz de vida, na medida em que torna-se descartável e objeto de consumo. Temos que nos reidentificar com o amor, retirando-o da fugaz arte dos desencontros. Tenho visto e convivido com pessoas sozinhas, solitárias e com imensas dificuldades de aprofundar as relações afetivas. As pessoas encontram-se, apesar de quererem, perdem o fio da meada quando as fímbrias do amor estão adormecidas. Muita angústia, dor, sofrimento, alegrias fugazes e pontuais, parecendo que as relações amorosas podem servir ao menos como “mercadoria de troca”. Culpa, indignação, dissimulação e alegrias transitórias. É preciso reaver o tesouro da esperança, o amor verdadeiro. No pensamento judaico cristão, a culpa é inevitável. O filósofo Heiddeger diz que há “uma culpa essencial”. Será? Hoje, com a agenda de festas, retornei do meu périplo, visitação a parentes “rio abaixo”. Saúdo aqui as Marias, encontrei uma em meu retorno, 12 anos, com o avô de 70, com dores lancinantes na coluna, arrastavam-se para irem ao Pronto Socorro de Várzea Grande. Ela, com grande corte profundo acima do tornozelo, rasgado pelo portão enferrujado. Ofereci carona aos dois. O Pronto Socorro de VG não tinha nem gaz e nem fio de sutura para o atendimento, mandaram para o Posto do Verdão em Cuiabá, que fez procedimentos, mas não tinha antitetânica. De volta ao PS de VG, lá estava do mesmo jeito, sujeira, pilhas de gente dolorida em longa espera, encaminharam para aplicar antitetânica daí a 2 dias, em uma Policlínica, pois não abrem nos fins de semana, feriados, e não tem plantão. Detalhe: continuava apenas 1 médico de plantão no Pronto Socorro e a fila aumentava. O que dizer do atendimento geral na saúde nesta cidade? – historicamente expropriada na usurpação das finanças e no abandono. Troca só discurso, políticos “cobras criadas”, todos da mesma cultura de grupos que tiveram governadores, parlamentares em todos os níveis. Mas sempre os mesmos, ou seus prepostos, que nada fizeram por esta cidade, senão enriquecer a si próprios, saídos do nada financeiro e depois, claro, ricos e milionários, poderosos pelo dinheiro, esvaziados de ética e moral.Podem ainda tentar mandatos, receber homenagens com seus nomes em praças, vias e logradouros públicos, confirmando que suas “crias” estão multiplicando-se tentando passar um apagador nas malfeitorias para terem a imagem de “boa gente”. Minha contenda de andança continua. Chego ao Abrigo do Bom Jesus, uma idosa faleceu naquela manhã. Foi acolhida judicialmente até o óbito, em 3 dias. Por denuncia de vizinhos a idosa vinha sendo maltratada sistematicamente. Portadora de Alzheimer, descuidada pela família, a causa de intervenção real foi porque levou uma surra do filho (advogado e alcoólatra). Teria que ser hospitalizada certamente. Veio rapidamente a óbito, meio a atônitos idosos e técnicos que deram-lhe carinho e cuidados  paliativos. Lá é o espaço onde se enfrenta  a profundeza abissal do abandono e solidão  na velhice. Apesar de tudo, maioria sonha em ter família, voltar para casa, ao menos receber o aconchego de uma visita. Quando? Alguns ainda pensam que será no próximo Natal e Ano Novo.
Waldir Bertúlio

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